A vida cristã
é uma jornada longa e perigosa.
Por Thiago Silva , colunista de opinião. Sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
“Não existe terreno neutro no universo:
cada centímetro quadrado, cada fração de segundo, é reivindicado por Deus e
contestado por Satanás” – C.S. Lewis, Reflexões Cristãs
Em 1942, em meio ao estrondo das bombas e ao silêncio ensurdecedor do
colapso moral que assolava a Europa, C.S. Lewis lançou um pequeno livro
peculiar: uma coletânea ficcional de cartas de um demônio veterano para seu
jovem aprendiz. As Cartas de Screwtape não pareciam, a
princípio, um sucesso natural. Não eram inspiradoras. Não eram doutrinárias no
sentido tradicional. Não ofereciam nenhum consolo espiritual explícito. O que
ofereciam, em vez disso, era um vislumbre do que aconteceu por trás das linhas
inimigas — um espelho sombrio no qual o cristão podia se ver. E nesse espelho,
Lewis revelou o que muitos haviam esquecido: que a vida cristã é uma guerra, e
o campo de batalha é a alma.
A genialidade da visão de Lewis reside não em grandes revelações, mas na
formação espiritual cotidiana. O objetivo do inimigo não é levar o paciente a
um pecado dramático, mas mantê-lo espiritualmente adormecido — entediado com a
igreja, orgulhoso de sua própria humildade, distraído pela política, apaixonado
por romances superficiais, cético em relação ao sofrimento e indiferente à
oração. Screwtape não visa destruir a fé com um único golpe, mas sufocá-la com
a confusão. Cada carta é uma pequena lição de como a formação espiritual
acontece — não primordialmente em vitórias ou derrotas espetaculares, mas em
mil escolhas diárias de pensamento, hábito e coração.
É por isso que As Cartas de Screwtape permanecem
tão relevantes. Porque o discipulado — o processo real e contínuo de
conformação a Cristo — é moldado e testado no cotidiano. E porque a guerra
espiritual não se restringe aos campos de batalha, ela se desenrola em
cozinhas, salas de aula, escritórios e bancos de igreja. Lewis sabia disso. Ele
criou um livro que não era apenas inteligente, mas também pastoral. Por trás da
ironia e da sátira, há um amor profundo pela alma e uma preocupação genuína com
a Igreja. A vida cristã, como Lewis demonstra, não é uma ideia abstrata ou um
passatempo de fim de semana. É uma jornada longa e perigosa rumo à glória,
empreendida em território inimigo, onde a cada dia nos aproximamos de Deus ou
nos afastamos dele.
Entendendo As Cartas de Screwtape : Contexto e
conteúdo
Quando "Cartas de um Diabo a Seu Aprendiz" foi
publicado em 1942, a Grã-Bretanha estava em plena Segunda Guerra Mundial. A
nação havia suportado o Blitz, vivido sob a constante ameaça de invasão e
enfrentava sofrimento, medo e perdas generalizadas.
Na época, Lewis estava conquistando um público nacional por meio de suas
palestras na rádio BBC, que mais tarde seriam compiladas em Cristianismo
Puro e Simples . Sua voz ressoava em uma cultura cada vez mais marcada
pelo secularismo, ceticismo e pela influência decrescente do cristianismo
tradicional. As Cartas de Screwtape confrontaram
essas mudanças com humor e perspicácia teológica, usando a correspondência
fictícia de um demônio sênior para revelar como a distração, o orgulho e a
apatia espiritual prosperam sob o disfarce da vida normal. A mistura de sátira,
teologia e apologética imaginativa de Lewis ofereceu tanto crítica cultural
quanto aconselhamento espiritual para uma geração ansiosa e cansada da guerra.
O livro consiste em 31 cartas fictícias de Screwtape, um demônio sênior,
para seu sobrinho inexperiente, Wormwood, um tentador júnior designado para
cuidar de um cristão recém-convertido, referido simplesmente como "o
paciente". Através da voz cínica e condescendente de Screwtape, recebemos
uma descrição profundamente perspicaz (e muitas vezes dolorosamente precisa)
das táticas usadas por forças espirituais para sabotar a fé e a formação
cristãs.
O que torna o livro tão poderoso é o uso que Lewis faz da teologia
invertida. Screwtape se refere a Deus como "o Inimigo" e descreve
virtudes cristãs como humildade, castidade e amor com repulsa. Essa perspectiva
invertida força o leitor a pensar teologicamente a partir do ponto de vista
oposto. Somos convidados a observar a vida cristã não através do idealismo, mas
pela lente da oposição espiritual. E, ao fazê-lo, começamos a reconhecer a
sutileza da tentação — não apenas em atos malignos, mas em desejos, hábitos e
amores distorcidos.
Screwtape adverte Wormwood para não se apoiar em pecados dramáticos. Ele
incentiva uma erosão pequena e gradual: encorajar o paciente a criticar os
sermões em vez de aplicá-los; a orar com emoções vagas em vez de confissão
honesta; a se fixar nas falhas dos outros membros da igreja; a idolatrar o
conforto e a segurança; a espiritualizar compromissos políticos enquanto se
esquece do Evangelho. Assim, As Cartas de Screwtape não
são um manual sobre atividade demoníaca — são um espelho que reflete a frágil
jornada do discipulado em um mundo caído.
Teologicamente, o livro está repleto da compreensão de Lewis sobre a
santificação. Embora não estivesse escrevendo uma teologia sistemática, a visão
de Lewis é bíblica: a vida cristã é um processo de conformação a Cristo por
meio do ordinário e do difícil, por meio do sofrimento, da comunidade, do
arrependimento e da obediência. A fúria de Screwtape aumenta quando o paciente
cresce espiritualmente sem sentir nada, quando resiste à tentação
silenciosamente ou quando ora sinceramente mesmo em meio à dúvida. Para Lewis,
essas são as marcas do verdadeiro discipulado.
Além disso, o livro termina não com uma demonstração espetacular de
vitória espiritual, mas com a morte — o momento que Screwtape chama de
“território do Inimigo”. E, no entanto, é aqui que o paciente encontra a paz.
Ele é recebido na glória, não por causa de sua força, mas porque foi
preservado. Ele perseverou, hesitante, mas verdadeiramente, e os demônios perderam
seu domínio.
É isso que torna As Cartas de Screwtape um
livro tão fascinante para o discipulado moderno. Não é fantasia. É realismo
disfarçado de ficção. Aborda o que muitas vezes ignoramos: que todo cristão
está em uma batalha, não apenas contra pressões externas, mas também contra o
afastamento interno. Que nossas mentes e corações estão em constante
transformação — e que o discipulado intencional, moldado pela graça, é a única
verdadeira resistência.
Um retrato do discípulo em processo
O paciente, o homem anônimo no centro de Cartas de um
Diabo a Seu Aprendiz , não é um herói espiritual. Ele não é um mártir,
místico ou visionário. Não é um santo cuja vida um dia será inscrita em
vitrais. Ele é, aparentemente, uma pessoa comum. E é precisamente isso que o
torna poderoso. Porque ele somos nós. Lewis optou por não dar um nome ao
paciente, não para torná-lo extraordinário, mas para apresentá-lo como um homem
comum — uma composição de inúmeros crentes que tropeçam na vida cristã. Ele se
converte logo no início da história, começa a frequentar a igreja, ora (embora
de forma inconsistente) e tenta viver uma vida moral. Mas ele está
frequentemente confuso. Luta contra a luxúria, o orgulho, o medo, a preguiça e
a aridez espiritual. Seus afetos são contraditórios. Seus motivos são obscuros.
Suas convicções são pressionadas. Ele é influenciado pela cultura, pelas
amizades, pelas modas intelectuais e pela dor pessoal. E, no entanto, em meio a
tudo isso, algo real está se formando nele. Ele está sendo discipulado — não em
um sentido programático ou institucional, mas no sentido espiritual formativo.
Sua vida está sendo moldada — seja conformada a Cristo ou deformada pelo mundo.
As instruções de Screwtape fornecem um currículo sinistro de
antidiscipulado. Seu objetivo não é destruir o paciente de uma só vez, mas
impedi-lo de crescer. Ele treina Wormwood para incentivar a complacência,
explorar as emoções e nutrir a passividade. Como ele mesmo diria: “De fato, o
caminho mais seguro para o inferno é o gradual — a suave inclinação, macia sob
os pés, sem curvas repentinas, sem marcos, sem placas indicativas” ( Screwtape ,
Carta 12). Portanto, Screwtape quer distorcer a visão do paciente sobre a
oração, tornando-a egocêntrica. Ele corrompe a humildade, fazendo com que o
paciente se orgulhe de ser humilde. Ele chega a transformar a igreja em uma
fonte de irritação — amplificando a hipocrisia alheia, ampliando as diferenças
sociais e embotando a vitalidade espiritual por meio da rotina.
E, no entanto, o que mais frustra Screwtape é que o paciente começa a
mudar — não drasticamente, mas genuinamente. Ele começa a obedecer mesmo quando
não se sente bem. Arrepende-se sem se justificar. Volta-se para Deus mesmo na
ausência de consolo espiritual. São nesses momentos que o controle de Screwtape
enfraquece. Pois nesses atos silenciosos de obediência, o paciente está
amadurecendo. Está sendo santificado — não em glória, mas em perseverança.
Sua perseverança não impressiona pelos padrões mundanos. Não é
dramática. Nem mesmo muito visível. É frágil. Mas é real. Ele continua orando.
Continua indo à igreja. Continua se confessando. Continua caminhando. E, ao
final das cartas, quando a morte chega, não é terror, mas triunfo. Ele é
acolhido na presença de Cristo — não porque tenha alcançado a grandeza, mas
porque a graça o sustentou. Ele não entra como uma celebridade espiritual, mas
como um discípulo. E isso basta.
É isso que torna As Cartas de Screwtape tão
impactantes, especialmente hoje em dia. O livro não apresenta a vida cristã em
tons heroicos e idealizados. Ele a retrata em tons de cinza, em meio à luta e à
fé silenciosa. Reconhece a dúvida, a tentação, o cansaço e o pecado — e ainda
assim insiste que Deus está agindo em meio a tudo isso. Ele nos lembra que o
discipulado não é reservado apenas aos fortes. É para os fracos que se apegam à
graça. É para os ansiosos que retornam a Cristo. É para os cansados que não
desistem. Em outras palavras, é para todos nós.
A história do paciente não é de excelência espiritual. É uma história de
fidelidade. E, no fim, é assim que a santificação se parece: lenta, custosa,
comum e bela. A história do paciente nos assegura que o discipulado é possível
— não apenas para os excepcionais, mas para todos que dizem: “Senhor, eu creio;
ajuda a minha incredulidade”.
Discipulado e guerra espiritual
Por que essa combinação — discipulado e guerra espiritual?
Porque a vida cristã não é uma jornada neutra de auto aperfeiçoamento. É
uma guerra de lealdade. Seguir a Cristo é entrar em um espaço disputado. É ser
conquistado pela graça e perseguido pelo inimigo. É caminhar, diariamente, com
Jesus através de provações, tentações, sofrimentos e pequenas vitórias —
aprendendo a orar, a amar, a resistir, a perseverar. E Lewis, através da lógica
invertida de seus demônios, nos ensina como o inimigo age para que possamos
aprender como a graça prevalece.
Lewis sabia que a guerra nem sempre é dramática. Muitas vezes, é
monótona. As armas do Inferno nem sempre são a violência e o caos, mas sim o
tédio, a distração, o ressentimento, o orgulho e a apatia
espiritual. As Cartas de Screwtape mostram como o
Inferno trava guerra não subjugando os crentes, mas os entorpecendo lentamente
— afastando-os da verdade um pequeno compromisso de cada vez. O paciente não
cai com um estrondo, mas sim com uma deriva gradual. Essa percepção, acredito,
faz de Lewis um grande guia para o discipulado na era moderna.
Numa época que banaliza o mal, descarta o sobrenatural e reduz o
cristianismo a terapia, a visão de Lewis é um corretivo
revigorante. As Cartas de Screwtape nos lembram
que a vida cristã é um campo de batalha. O inimigo prefere a distração à
descrença, a complacência ao confronto, o cinismo à coragem. Mas o Evangelho
nos lembra de uma verdade maior: Cristo triunfou. Sua morte desarmou os
poderes, Sua ressurreição garantiu a derrota deles e Seu Espírito capacita Sua
Igreja a perseverar. Ser um discípulo é viver como um soldado nesta realidade:
resistindo à tentação, reordenando o amor e perseverando com a Igreja até o
fim.
Publicado originalmente no Boletim Informativo The
Worldview.
Thiago Silva
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